Episódio 18 - Vacuidade
Graças à decisão dos meus pais de terem um filho e terem levado a gestação toda do começo ao fim eu tive a oportunidade única de nascer. Segundo a minha mãe, foi uma gravidez ok, sem grandes percalços. Eu nasci de cesariana dessas agendadas, prática bastante comum à época do meu nascimento. Porém, era uma cesárea recomendada, pois estava quase passando do tempo regulamentar de nascimento e nem sinal do começo do trabalho de parto.
Aos seres que inventaram a cesariana, eu devo meus agradecimentos e a minha vida. Sem essa técnica cirúrgica é provável que eu não estivesse aqui agora.
Dei sorte de ter sido uma gestação que vingou, diferente de tantas gestações que não vingam nos primeiros meses. É um fato bastante comum inclusive. A taxa de gestações que não vinga, segundo a Wikipedia, está em torno de 10% a 20%.
É um milagre ao quadrado, de certa forma. Eu sou uma gestação que vingou, mas também sou um pouco das gestações dos meus pais, que permitiram que eles existissem em primeiro lugar. E antes deles os meus avós. Se voltarmos no tempo, teremos uma progressão geométrica astronômica, envolvendo uma soma de seres específicos que foram gerados, nasceram e existiram por tempo suficiente para deixar filhos.
Se a gente pensar nas dificuldades existentes no passado, é ainda mais espantoso, sem as condições tecnológicas todas.
As causas do meu nascimento são inúmeras, assim como as do nascimento de qualquer outro ser vivo. Somos herdeiros dessa infinidade de seres. Um milagre estatístico.
Depois que nasci, fui cuidado e criado pelos meus pais e avós.
Entrei na pré-escola com dois anos e sai do ensino médio com dezessete, e nesse meio tempo tive contato com mais um oceano de gente que veio ao mundo nas mesmas condições estatísticas e que deixou alguma marca de alguma forma.
Tive professores ótimos, alguns outros péssimos e muitos outros professores medianos. Um grupo razoável de seres que eu nem lembro mais do nome e do rosto. Lembro só de alguns poucos professores bons, que me marcaram de forma positiva, e dos que me causaram mais sofrimento. Mas de alguma forma, todos me possibilitaram enquanto ser. Se hoje você está lendo estas palavras, agradeça a eles por terem me tornado um ser capaz de juntar letrinhas e formar palavras e frases que façam algum sentido e ser capaz de tentar escrever um texto que preste e beneficie alguém de alguma forma.
Tive, obviamente, muito mais colegas de classe do que professores, e a imensa maioria deles eu também não lembro mais. Talvez as causas que possibilitem minha memória não sejam lá essas coisas1.
Fui amigo de alguns, indiferente a uma imensa maioria e detestado por alguns outros, por causas que eu também desconheço. Às vezes me aborrecia com um ou outro. Sofria bastante bullying também, cujas causas não tinham rigorosamente nada a ver com as minhas ações para com os meus colegas. Mas tinha suas causas, pois tudo tem causas e desdobramentos.
De alguma forma essas amizades deixaram coisas na minha vida. O primeiro gibi dos X-Men. O gosto por videogame. O primeiro disco do Iron Maiden que eu ouvi. As piadas péssimas que na época me fizeram rir mas que são absolutamente inaceitáveis hoje e que é melhor que fiquem apenas na memória da época2. Sempre ser tirado por último no futebol. A primeira banda de rock.
Penso que até os que eu não lembro, de alguma forma, também deixaram algo sutil que escapa à minha percepção. Infinitos objetos e tranqueiras trazidos para a minha vida pelas marés kármicas. Algumas eu peguei pra mim, resolvi chamar de “meus” e tomar como marco de personalidade, identidade, etc. Enquanto isso, o grosso desses destroços ainda está enterrado na areia dessa praia da vida, alheia à minha percepção, e é provável que fique lá até eu morrer.
Trago também a marca de outros seres que eu não conheço. Por exemplo, dei a sorte de nascer no mesmo mundo onde caminhou Jimi Hendrix. Ele morreu muito antes deu nascer, num outro país, pouco mais de uma década antes do meu nascimento. Só fui tomar ciência do som desta deidade quando adolescente, e cá estou eu até hoje gastando dinheiro em guitarra e songbook, ajudando por tabela a aquecer um mercado específico de um nicho de música que já esteve melhor das pernas.
Me pergunto se algum não-guitarrista ainda escuta Jimi Hendrix nos dias de hoje.
Podia ser videogame, ou livro de macumba, ou comida, por exemplo, só pra citar as outras coisas que eu gosto e que me vem à mente. Cada coisinha que eu compro na Amazon dá um empurrãozinho nesse mercado, meio que sinalizando às inteligências envolvidas “vai lá, manda mais”. E frequentemente mandam mais sim, cada pequeno empurrão ajudando a modelar esse mundo de alguma forma. E isso traz consequências, que traz consequências, que traz consequências, que traz consequências, etc.
Às vezes é um disco remasterizado novo do Hendrix. Outras é o bilionésimo jogo do Mario. Outras é só aquecimento global mesmo.
Alguns desses fenômenos eu curto. A imensa maioria eu não pedi3 mas é provável que todos tenham alguma influência mínima da minha parte, mas que está lá. E isso vai gerar minhas realidades futuras. Algumas com as quais eu não preferia não ter que lidar mas que vão se apresentar pra mim e vão dar aquela mexida no destino de alguma forma, modelando as possibilidades do Rafael do futuro.
Por exemplo, o Rafael do presente só mexe com astrologia porque um bando de malucos há uns cinco mil anos resolveram observar o céu e rabiscar em argila as suas conclusões. E, por uma infinidade de causas isso acabou virando uma tradição com corpo de conhecimento, filosofias, teologias e tudo mais. E o mais espantoso é que várias vezes o negócio quase desapareceu para ser redescoberto depois.
Mesma coisa com budismo e ensinamentos sobre a vacuidade, com a diferença que esses são um pouco mais recentes - mais ou menos uns dois mil e seiscentos anos - numa outra região do planeta. Mas essa é outra tradição cheia de altos e baixos, que já esteve várias vezes em vias de ser extinta.
Quase dói a cabeça de tentar vislumbrar essas coisas todas. Da arte da cartinha de Magic inspirada em uma obra renascentista à descoberta do circuito integrado que possibilita a existência desse computador que eu uso pra escrever (bem, e de toda a internet na real).
Tudo isso me possibilita de alguma forma, ainda que muitas vezes de uma forma bem escrota, como quando você pega aquele transporte público lotado e imundo, e sente no lombo a verdade verdadeira do capitalismo, de uma forma quase impossível de ser explicada ou transmitida por palavras - ainda que você tente fazê-lo porque não quer que mais gente passe pelos sofrimentos que você passou.
É parte de mim de alguma forma, por me possibilitar dessa forma tão única. Mas nada eu não sou nada disso. Primeiro porque essas coisas me possibilitam, mas ainda não são as minhas ações nem escolhas. Segundo porque tudo já estava lá antes e provavelmente vai estar lá de alguma forma depois que eu morrer.
Terceiro que eu estou falando basicamente de um recorte meu da minha própria experiência. Em específico, de como essas coisas todas modelam o olhar e a maneira como eu recorto, falo e recrio as minhas experiências sobre como essas coisas todas modelam o olhar e a maneira como eu recorto, falo e recrio as minhas experiências sobre como essas coisas todas modelam o olhar e a maneira como eu recorto, falo e recrio as minhas experiências, etc.
A realidade última ainda tá bem longe.
Tenho lua natal exilada em capricórnio. Sendo a lua significadora da memória, pode ser um testemunho de memória zoada.
A memória ruim seria útil nessa situação.
Uma coisa chata de aspirar por coisas específicas é que elas frequentemente tem implicações que a gente preferia não ter. Tipo gostar de brincar de Lego, sendo que esse brinquedo fenomenal só existe porque a indústria do petróleo existe. O Samsara é cheio desses paradoxos e contradições.